Um sistema participativo de garantia para as Fortalezas (indígenas) Slow Food

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O processo de certificação é um dos aspectos burocráticos do trabalho agrícola que, na verdade, tem muito pouco a ver com agricultura e muito mais com papelada. Entretanto, é uma parte importante da produção e venda de alimentos, para que se possa ter um produto certificado.

Os sistemas de Certificação por Terceiros (TPC) são determinados pela Organização Internacional de Padronização (ISO) e, geralmente, consistem em normas que devem ser aplicadas e fiscalizadas por agentes técnicos externos (como inspetores), usando formulários de garantia genéricos aplicados globalmente. A certificação orgânica é uma delas.

Entretanto, entre um TPC e uma autocertificação, há uma terceira via, chamada “Sistemas Participativos de Garantia” (SPG).

Os Sistemas Participativos de Garantia (SPG) são sistemas de garantia de qualidade de baixo custo para mercados locais e cadeias de suprimento curtas. São baseados na difusão de conhecimento técnico, inclusão e responsabilidade coletiva. A diferença principal em relação à Certificação por Terceiros (TPC) é que os SPG incluem no processo outras partes interessadas, não somente produtores e inspetores, e são fundados na confiança, redes sociais e troca de conhecimento.

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Desta forma, as partes interessadas escolhem os membros dos órgãos de governança e os indicadores que serão verificados conforme as diretrizes SPG.

Embora tenham nascido principalmente como alternativa aos TPC para produtos orgânicos, os SPG são vistos como uma ferramenta promissora para avaliar a sustentabilidade na agricultura também de outros pontos de vista, devido à sua adaptabilidade e flexibilidade a contextos mais variados.

O que significa certificar um produto de uma Fortaleza Slow Food de uma forma participativa?

No âmbito do projeto “Empoderamento dos Jovens Indígenas e de suas Comunidades para a Defesa e Promoção do seu Patrimônio Alimentar”, foi lançada uma inciativa-piloto de SPG para melhorar a rastreabilidade das Fortalezas e o nível de garantia de qualidade, de acordo com o Slow Food (produtos organolepticamente bons, produção limpa e padrões justos), de dois produtos das Fortalezas indígenas, o Mel Ogiek e o Agave da Mixteca de Oaxaca. Além disso, cabe mencionar que, na mesma época em que se trabalhava nas duas Fortalezas indígenas, outra Fortaleza italiana, a do feijão vermelho de Lucca, também seguiu o mesmo caminho.

O Slow Food e os líderes dos povos indígenas estavam interessados em adotar um sistema de baixo para cima para garantir produtos bons, limpos e justos, mas com o mínimo de atuação da sede central do Slow Food. Uma iniciativa de base que daria uma independência quase completa aos territórios, resiliente ao longo do tempo e que acrescentaria credibilidade internacional e valor ao sistema Slow Food, em particular ao projeto das Fortalezas.

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Cada produto do projeto das Fortalezas deve seguir suas diretrizes de cadeia de produção e um protocolo de produção criado especificamente para o produto. Deste ponto de vista, uma Fortalezas deve seguir um conjunto de regras muito semelhantes ao TPC, com a diferença de que as sanções pela não conformidade variam significativamente. Uma iniciativa de SPG para o Slow Food ajuda na medida em que o controle da implementação das diretrizes, protocolo de produção e decisões sobre as sanções vêm diretamente dos territórios e da Comunidade Slow Food de referência e não da sede central do Slow Food (exceto poucos casos especiais).

A Fortaleza do Mel Ogiek

Os Ogiek são um povo indígena que vive na Floresta Mau e arredores, no lado sudoeste do Vale do Rift, no Quênia, e nas florestas do Monte Elgon, na fronteira noroeste entre Quênia e Uganda. Todo o sistema de crenças e subsistência dos Ogiek depende da floresta e de seus recursos, sendo o mel o produto mais importante, que representa o alimento principal das famílias Ogiek.

“Não somos Ogiek sem mel”, Clare Rono, membro da Fortaleza do Mel Ogiek

Entre os diversos desafios que o povo Ogiek enfrenta para proteger seus meios de subsistência em suas florestas ancestrais, a atividade madeireira seguida de reflorestamento com espécies exóticas não floríferas é uma ameaça direta à atividade forrageira das abelhas e, portanto, à produção de mel. Em 2012, um grupo de produtores de mel Ogiek uniu forças e criou a MACODEV, uma organização comunitária responsável pela venda do mel em nome dos produtores. Em 2015, foi lançada a Fortaleza do Mel Ogiek para ajudar a preservar o ecossistema da Floresta Mau, promovendo o valor da cultura ancestral dos Ogiek por meio de seu produto mais importante: o mel.

Os jovens participam ativamente da extração e produção de mel, e também das atividades da Fortaleza Slow Food. Os jovens desempenham hoje um papel de liderança na organização local e nos processos de tomada de decisões.

A Fortaleza do Maguey de la Mixteca Oaxaqueña (agave da Mixteca de Oaxaca)

O povo Mixteca é o quarto maior grupo indígena do México. Vive há tempos imemoriais na região de Mixteca, na parte sudoeste do país, nos Estados de Guerrero, Oaxaca e Puebla. A migração dos jovens para as áreas urbanas é uma das principais ameaças à sobrevivência da cultura e tradições do povo Mixteca.

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Pertencer a uma comunidade indígena não significa que somos pobres, às vezes, nas comunidades temos muita riqueza, mas o que falta é o conhecimento para tirar proveito dela e, por isso, ser parte da Fortaleza do Maguey de la Mixteca Oaxaqueña implica trabalho, conhecimento e força de vontade”, Micaela García Reyes, membro da Fortaleza da Agave Mixteca de Oaxaca

Entre os diversos desafios que o povo Ogiek enfrenta para proteger seus meios de subsistência em suas florestas ancestrais, e tanto o maguey quanto seus derivados são pilares fundamentais de seus sistemas tradicionais de subsistência. O fim de vida de uma planta adulta coincide com a extração, da parte central, de um líquido chamado aguamiel (água de mel) que, fermentado, torna-se o pulque, uma bebida levemente alcoólica, tradicionalmente consumida em família e por ocasião de festas tradicionais.

A queda no consumo de pulque se deve à importação de novas bebidas industriais, como a cerveja, que tirou o interesse dos agricultores em relação às variedades de maguey que produzem pulque. Um grupo de mulheres se reuniu para resgatar o cultivo dos maguey e, em 2016, 35 delas criaram um grupo de trabalho chamado Mujeres Milenarias. Em 2018, este grupo de mulheres criou a Fortaleza Slow Food do Agave Oaxaca Mixteca para se tornar parte de um movimento internacional e para proteger e promover variedades endêmicas do agave nativo Oaxaca Mixteca pulquero para a produção de aguamiel e pulque.

Determinar o SPG com as duas Fortalezas

Os objetivos para determinar o SPG foram: assegurar uma renda melhor para os produtores graças ao aumento de valor dos produtos das Fortalezas; reconhecer o valor cultural e ambiental dessas produções local e internacionalmente; utilizar as melhores práticas disponíveis para o cultivo, produção e colheita.

As atividades aconteceram entre agosto e dezembro de 2019. Os primeiros passos incluíram oficinas de capacitação com a equipe do Slow Food e especialistas externos sobre o funcionamento teórico das iniciativas de SPG, discutindo seus pontos fortes e fracos, e o mapeamento das partes interessadas para aquelas Fortalezas específicas. Uma vez mapeadas as partes interessadas, foram selecionados os dois órgãos de governança principais do SPG, isto é: o Comitê de Ética, que coordena principalmente o trabalho, e o Grupo de Garantia, que participa ativamente das visitas a campo e monta as listas de verificação (Ficha de Garantia).

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O primeiro trabalho prático foi a elaboração das listas de verificação para cada Fortaleza e o teste de seu funcionamento diretamente a campo. Para cada Fortaleza, a experiência foi diferente, particularmente para as visitas a campo, já que as Fortalezas variam significativamente em tamanho e número de membros.

O passo final foi o momento do feedback, quando foram discutidos os principais desafios do sistema.

Quais os pontos fortes e os desafios de um SPG?

“Desde que começou o SPG, houve grandes avanços, passamos a ter consideração por coisas pelas quais não tínhamos antes”, Martin Lele Kiptiony, Coordenador dos produtores da Fortaleza de Mel Ogiek

De modo geral, na opinião dos produtores e de outras partes interessadas, a abordagem Slow Food ao SPG foi apropriada e contribuiu para perseguir as metas estabelecidas. O SPG provou ser um componente adicional importante para o aprimoramento dos projetos das Fortalezas:

  1. Sustentabilidade social por meio do pleno controle e propriedade da qualidade do processo de produção e do produto final; mais atratividade para os jovens, que possuem as habilidades gerenciais e que podem entender melhor as preferências dos consumidores.
  2. Sustentabilidade econômica por meio de maior renda graças à melhor qualidade garantida dos produtos e a consequente expansão do potencial de comercialização para todos os produtos.
  3. Sustentabilidade ambiental por meio de gestão sustentável dos recursos naturais no processo de produção, verificando que todos os membros adotem práticas ambientalmente sustentáveis.

“O SPG é importante e no que nos baseamos para obter bons produtos e estarmos seguros de que o produto oferecido aos consumidores seja de boa qualidade e mais natural, não um produto industrializado.” Micaela García Reyes, membro da Fortaleza do Agave Oaxaca Mixteca

Fortalecimento da coesão e empoderamento dos participantes, maior transparência e qualidade técnica da produção e marketing, maior lucro a partir das vendas e expansão do potencial de marketing pela maior confiança dos consumidores são os elementos fundamentais para criar uma iniciativa SPG bem-sucedida, que demonstrou dialogar perfeitamente com os elementos fundadores do projeto das Fortalezas.

O maior desafio foi o surto de COVID-19, que reduziu as possibilidades de reunir os feedbacks finais, impediu todas as reuniões sociais e limitou a mobilidade, dificultando a comercialização dos produtos finais. Entretanto, é importante notar que o conceito de solidariedade que está implícito no SPG reforça a resiliência das redes alimentares locais em situações como a pandemia da COVID-19, pois os membros desenvolvem o hábito de confiança e colaboração para que o SPG possa funcionar.

Resta definir o custo econômico do próprio sistema (por exemplo, o custo do transporte para as visitas a campo), principalmente pelas razões mencionadas acima.

Concluindo, podemos dizer que a estrutura de qualquer Fortaleza Slow Food se baseia automaticamente num espírito existente de colaboração e aprendizagem mútua entre os membros. Além disso, o SPG esclarece e torna mais visível e tangível como a contribuição de cada um e de todos os membros é uma condição necessária para o sucesso do grupo como um todo.

Para mais artigos sobre o projeto, veja

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